A herança é uma sucessão.
Em aspectos espirituais e comportamentais recebo as heranças a mim,
deixadas por minha mãe, sejam elas funcionais ou disfuncionais, porque elas são
parte do meu ser, elas me construíram.
As heranças disfuncionais tornaram-me uma pessoa que tem medo e vergonha.
O medo me deixa sempre angustiada com a mudança, com o que não posso ver ou
saber. O medo me paralisa ao mesmo tempo que fascina: enfrento-o como posso. Já
a vergonha, creio que me domina mais, vergonha de expor meus dons, minha vida,
meus passos, no entanto não tenho venho vergonha de expor meu conhecimento,
pois com ele algumas vezes obtive respeito.
A desconfiança também é uma das heranças disfuncionais, desconfiança do
futuro, do que pode ter acontecido, desconfiança da palavra, se é verdade ou
não, ainda mais se a confiança foi uma vez quebrada: a pulga atrás da orelha é
uma moradora eterna em alguns casos.
Brincar, divertir-se, aceitar ou fazer brincadeiras não é muito a minha praia também em muitos momentos, pois creio que esse traço venha da vergonha. Acho espetaculares algumas cenas de grandes amizades que curtem a vida de forma leve e solta, mas não me vejo assim e gostaria de poder um dia, ser um pouco mais leve e solta.
Ah, ficar emburrada, que também pode ser descrito como ficar chateada, não
conversar até o interior se resolver. Isso acontece com menos frequência, a medida
que o cérebro e o coração começam a perceber quanta bobagem é, viver dessa
forma. Causa menos sofrimento, menos dias tristes e ninguém tem culpa de uma fragilidade.
Dramatizar. Faço isso às vezes para ter a atenção pretendida. Querer parecer
forte e frágil: é uma briga, pois permeia entre berros e carência, ora uma
leoa, ora a gatinha, com aqueles olhos de dar pena.
Gritar é uma disfunção muito difícil de lidar, pois muitas vezes acredito
que só assim tenho voz e algumas vezes já descobri que quando me calo é que sou
ouvida. Gritar machuca quem me ouve, machuca-me depois, pois meu orgulho ferido
não quer deixar o tom de voz baixar. Tenho lutado para não começar a falar alto, pois os mais prejudicados com esse descontrole são meus filhos e marido.
Em compensação à essas disfunções, herdei muitas atitudes funcionais, as que me fazem muito feliz, como o dom da oração - de interceder pelos que precisam. A oração faz parte da minha vida e pensar nos que sofrem é uma forma de poder ajudar e sei que sou muito pequena perto da vida de oração que minha mãe que é meu lindo exemplo. Vou melhorar dia a dia para conseguir chegar a essa plenitude.
Ajudar. Simplesmente ajudar: quem tem fome, quem tem sede, quem precisa
vestir-se, quem não tem brinquedos para brincar, quem não tem oportunidade de
falar ou de se expressar. Minha mãe enxerga a necessidade das pessoas e quando
lhe é falado sobre um pedido de ajuda: pronto. Estende a mão, como se fosse uma
obrigação, repartindo o pouco que tem, e não faz falta, se multiplica. Se não
pode sozinha, pede ajuda e assim tudo vai se resolvendo. Não estou ainda nesse patamar
de evolução, mas herdei esse ímpeto, secretamente voltado à ajuda psicológica.
Cuidar de tudo e de todos, um pouco menos de si. Cuidar da casa, manter tudo organizado, em ordem, cuidar da roupa, das camas, dos filhos, do marido. Não é possível sempre, ainda mais trabalhando fora, mas é satisfatório cuidar para que todos se sintam bem.
Cozinhar está nas veias, mas não coloco muito em prática porque tive a sorte
de casar um homem apaixonado pela cozinha. Então somos bem servidos. Eu curto
mais a parte doce da cozinha e o marido, a parte culinária tradicional e minha
mãe caminha pelas duas partes. Então sou privilegiada por ter herdado esse dom
maravilhoso e abençoado.
Honestidade e fidelidade completam minhas lembranças de heranças funcionais:
ser honesta e fiel em que tudo que sou e faço. Assim como minha mãe.
Assim as heranças de minha mãe se fundem em mim, no que SOU hoje.
Recebo, agradeço e multiplico as heranças funcionais para que o legado
permaneça e toda essa maravilhosa experiência de ter traços especiais de minha
mãe seja percebido, lembrado e quem sabe, seguido.
Recebo, agradeço e peço permissão para que em relação às heranças disfuncionais, eu possa fazer um pouco diferente, agora que sei porque sou assim, como parar de gritar, de me sentir menor e menos, deixar-me ser cuidada também.
Minha mãe chama minha atenção quando estou fora do meu eixo, daí obedeço
imediatamente e reflito: posso mudar esse comportamento e ser mais feliz.
Agradeço à minha mãe pelas heranças que me construíram no que hoje SOU. Eu
SOU filha de minha mãe. Eu SOU a filha da mãe que por nove meses me gerou, me
quis e por isso estou aqui. Obrigada pelo colo, pelo carinho, pelo que pôde
dar-me, que compreendo que era tudo que o tinha, pelo alimento que nunca faltou,
pelas vezes que ao invés de se aborrecer apenas esboçou espanto e entendi tudo.
Agradeço pelas noites em que ficou sem dormir por minha causa, pelas
vezes que se preocupou com o que cozinhar de mistura para nós, com as vezes que
teve que dividir o ovo frito com os filhos da vizinha. Quando foi criticada por
sair com todos os filhos e cuidar para que nenhum ficasse para trás na rua,
como uma galinha cuidando dos seus pintinhos.
Ser mãe é renascer em cada filho: minha mãe renasceu cinco vezes, mesmo sem a tecnologia de hoje, mesmo sendo um risco, mas decidiu dar-nos a vida e em cada filho vive, sofre e renova-se.
Muito obrigada MÃE, por ser tão grande em SER e por ser como É. Obrigada
Senhor, pela Mãe que me destes, pelo exemplo de vida.

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